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quarta-feira, 21 de julho de 2021

NOS TEMPOS DO PARAÍSO

                                                 Maria Fumaça na Estação do Rio D'Ouro
 Por: Berguinho

O 'Céu' é logo ali no Pé da Serra
Suponho que os que tiveram suas adolescência vividas, lá pelos idos dos anos 50/60, nessas 'bandas' de cá da extinta(que pena)Estrada de Ferro Rio D'Ouro, com acesso mais prático às  localidades vizinhas das Serranias do Tinguá, como eu, por exemplo, viveram em épocas paradisíacas e lúdicas por excelência. Naqueles tempos mágicos, a natureza exuberante reinava absoluta à partir  de poucos metros do centro de Miguel Couto, onde vivo desde que nasci - há pouco mais de setenta anos.
 
Ir Trabalhar no Rio? Só se for no Rio das Velhas!
Há época, nem todos se dispunham 'pegar' o trem (Maria Fumaça) para buscar o sustento da família se empregando em 'empresa' no Rio de Janeiro, nem precisava. Como milagre Divino, as necessidades básicas alimentares, e outras, estavam ao dispor da pequena população local, em seus galinheiros, em suas hortas e na natureza. O Rio das Velhas (em Miguel Couto), por exemplo, que hoje é polo de poluição e condutor de dejetos para o oceano, naqueles tempos, além de um de nossos brinquedos prediletos era, ainda, provedor alimentar oferecendo às pessoas, além do prazer e os demais benefícios da natação, ainda, a garantia do peixe à mesa. Tudo isso sem falar na possibilidade da extração de 'areia, destinada à construção" , ao dispor dos mais despojados em lidar com a pá e a enxada, que, ao vender o produto do seu suor, obtinha uma boa quantia em cruzeiros.

Camarão à vontade com uso do Gererê 
O 'Valão da Madame' (Figueira II) permitia a pesca de Bagres, Carás, Piabas e outros peixes... Já no Rio Iguassú - em Iguaçu Velho - local que deu origem a Nova Iguaçu - que no século XIX fora um rio navegável e com saída para a Baía da Guanabara - para aqueles que quisessem sofisticar o cardápio, bastava afundar o gererê (espécie de cesto usados como peneira de cipó ou ripas de casca de bambu afiladas) e  sacolejá-lo de baixo para cima nos galhos das vegetações mergulhados sob a lâmina d'água, que os camarões de água doce (Pitú) vinham saltitando aos montes para abarrotar os bornais dos pescadores. 

Cardápio Farto
Não obstante às dádivas dos rios, outras opções alimentares abundavam para um cardápio tão farto quanto variado: mamão, jaca, manga, cajá, jamelão, laranja, cana, ingá, araçá, goiaba, banana...estavam a mercê de todos na natureza pródiga e generosa, que se eximia da cobrança de quaisquer ônus. Sem dizer que não faltavam terras agricultáveis e baratas, onde os mais esforçados podiam, construir galinheiro, chiqueiro e, de quebra, plantar: milho, feijão, aipim, abóbora, hortaliças, legumes  e uma infinidade de outros alimentos... Ah, sim! Havia, ainda, caça em abundância pelas matas dos entornos.

Os Passeios de Sábado na Maria Fumaça 
Os passeios da molecada para Tinguá, Jaceruba, Rio D'Ouro, Santo Antonio ou outras estações de trem do 'Pé de Serra', se davam, geralmente, aos sábados (domingo era sagrado para jogar futebol). Pagar passagem de trem? Nem pensar! Até porque não tínhamos dinheiro. Simples assim - esperávamos o trem logo após a estação e o 'pegávamos' com ele em movimento. Subíamos para o teto do vagão de carga, através de uma escada fixa que ficava entre vagões (perigosíssimo) e viajávamos lá em cima, cada qual de costas em relação ao chaminé da locomotiva, para evitar que a fuligem do carvão (cisco) expelido, entrasse em nosso olhos(quando isso acontecia os olhos ardiam muito e ficavam irritados). Com esses procedimentos evitávamos o 'bilheteiro'. O trem era, apenas, mais um brinquedos que fazia parte do nosso 'mundo encantado'!
 
Assalto aos galinheiros
Todavia, nesses dias de passeio, a alimentação requeria um planejamento mais complexo. Galinha assada, por exemplo, era provento certo nas mochilas da rapaziada, porém, consegui-las requeria certa estratégia: Nas sextas- feiras que antecediam aos passeios, dois ou três galinheiros das casas dos próprios moleques(quase todas as casas tinham galinheiro e horta) eram visitados na 'calada da noite', por eles mesmos - via de regra - sem que os pais soubessem e no firme propósito de reduzir, em cerca de meia dúzia, o 'censo' da população de penosas no planeta, em prol do Pic-nick da turma, bem como de saciar a fome insaciável da molecada. O interessante é que a 'coisa' era feita de modo o mais autossustentável possível: se nesta semana galinhas saiam de determinados galinheiros, na outra sairiam  de outros, para que os pais mais rigorosos não desconfiassem. Muitos pais sabiam que estavam sendo suprimido(para não dizer roubado) pelo próprio filho, mas faziam 'vista grossa'. Havia muita fartura! 

A Bica da Rua H 
Havia uma bica 'gigantesca' no Centro de Miguel Couto, na rua Marli Carvalho Pereira(antiga Rua H), em frente de onde é hoje o Mercadão Popular. Desta bica vertia, em fluxo torrencial, água tão translúcida e inodora quanto gelada, onde os moradores, principalmente, os que moravam na periferia do bairro, enchiam com rapidez suas latas que carregavam sobre a cabeça protegida com rodilha(saco de linhagem torcido em formato 'caracol', que ficava entre a lata d'água e a cabeça das pessoas para evitar ferimento). Naquele tempo, a maioria das residências não tinham água encanada e as outras opções eram: A água de poço, ou água do Rio das Velhas que estavam longe de serem consideradas potável, pelo menos em comparação às aguas do Rio D'ouro considerada, há época, a segunda mais pura do mundo. 
 
As Galinhas eram Assadas Clandestinamente
Pois bem! Mas, voltemos ao que interessa! De posse das galinhas, os responsáveis pelo preparo das aves: três ou quatro moleques escalados por uma espécie de 'assembléia' eventual, iam para a tal bica limpá-las, sem antes deixar de acender uma pequena fogueira para ferver água e queimar às penas. Ali mesmo as galinhas eram temperadas e jogadas numa lata de 10K. Após a operação, que se dava tarde da noite, quando não havia mais população à rua, as galinhas eram levadas para a Padaria Santo Antônio (hoje, mais conhecida como 'Padaria do Arnaldo') para serem assadas clandestinamente, no - forno à lenha - com a conivência do Padeiro, enquanto  os moleques incumbidos da 'Operação Frango', 'tiravam' um cochilo aquecidos pelo calor à beira do forno. 

Sujou - Dona Amélia nos Pegou
Sobre o influxo do calor à beira do forno, em um platô de cimento, agregado, havia sempre uma chaleira com café à disposição de todos e uma cesta de pães quentinhos. Numa dessas vezes, em plena madrugada fui acordado pela saudosa Dona Amélia, mãe do Arnaldo e esposa do saudoso Seu Manoel - dono da padaria. Quando vi de quem se tratava, não sabia o que fazer. Sabia, isso sim, que se dona Amélia falasse com meu pai, iria tomar uma 'coça' de vara de goiabeira. Ela disse que ia contar, mas, pra minha sorte, não contou. Dona Amélia, tinha 'coração de ouro'!

Aguardando o Apito do Trem
Garantido o 'rango', o sábado à beira dos rios de águas cristalinas no 'Pé da serra' prenunciava ser maravilhoso. Pelas seis horas da manhã, o restante da gurizada já estava lá ao lado dos trilhos após a Estação, aguardando o apito do trem, para 'pegá-lo' em movimento! Nessas nossas excursões, vez por outra, nos metíamos em confusão(briga), mas isso é assunto para uma próxima oportunidade!   


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